Assim como a letra da música escrita pela rainha do rock, “tem pessoas que a gente não esquece nem se esquecer”, suas mais de 300 composições também não serão esquecidas.
Suas canções a alçaram à marca de 55 milhões de discos vendidos, tornando Rita Lee a mulher mais bem-sucedida no mercado fonográfico brasileiro. Das 315 músicas registradas oficialmente em mais de 50 anos de carreira, são 32 as canções sabidamente inéditas em sua voz, registradas somente por outros artistas.
Segundo Naira Marcatto, cantora, pesquisadora do campo da História da Música Popular Brasileira e professora da área na Faculdade Santa Marcelina, Rita foi uma artista ímpar na indústria da música brasileira. “Poucos músicos construíram uma obra que passasse quase incólume ao tempo do sucesso. Rita Lee foi ouvida, cantada e celebrada por sua geração e pelas gerações que vieram depois, como se sua música tivesse um aspecto atemporal, um apelo constante à escuta. Ela encerrou a carreira há mais de uma década e, ainda hoje, artistas muito jovens, recém-saídos da adolescência, ouvem, cantam, tocam e estudam essa obra com uma identificação imensa”.
E completa: “Rita acertou quando cantou ‘enquanto estou viva, cheia de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz!’. E, esperamos que tenha errado também: é impossível que sua música não continue fazendo ‘um monte de gente feliz!’, mesmo sem sua presença física“.
Rita Lee Jones, paulistana, neta de imigrantes americanos e italianos, começa sua carreira ainda na adolescência quando monta uma banda só de meninas, as Teenage Singers. Quando esta banda se funde a uma outra, um trio de garotos chamado Wooden Faces, nasce a Six Sided Rockers que, com o abandono de 3 integrantes, vira Os Mutantes. Rita Lee fez história no mercado fonográfico e a seguir, Naira nos conta 5 fatos de como sua presença mexeu com estas estruturas.
O surgimento
“Os Mutantes promoveram uma revolução na música brasileira”, diz Naira Marcatto que complementa: “o Brasil era um país acostumado a ter música diariamente no horário nobre da TV, que tinha sido criado pelo rádio e tinha por hábito essa escuta musical, feita majoritariamente de canções com instrumentos acústicos. Guitarra, baixo elétrico e teclados já eram bastante usados pela Jovem Guarda, mas falavam diretamente aos jovens e não exatamente eram bem-vindos ao núcleo da dita ‘MPB’. Um ano antes do surgimento dos Mutantes em rede nacional, os principais artistas do país saíram inadvertidamente em passeata contra a guitarra elétrica, veja só! Além disso, tinha uma seriedade muito grande no ambiente musical. Fácil encontrar figuras como Chico Buarque, um menino de 20 anos, vestido com um smoking para apresentar seus sambas na TV. Quando aparecem aqueles jovens num power trio, coloridos e fantasiados, foi uma afronta, um choque eletrificado”.
A mulher
Rita não foi a primeira compositora, não foi a primeira cantora. Aliás, a música brasileira é, em boa parte, construída por mulheres e por mulheres que sofreram muito por fazer música: Chiquinha Gonzaga, Dalva de Oliveira, Carmen Miranda, Elizeth Cardoso, Elza Soares e tantas outras. E isso falando só das que conseguiram chegar ainda bastante jovens ao mercado, de uma forma ou outra. Tivemos também o apagamento de muitas mulheres negras: Dona Ivone Lara nunca teve o reconhecimento merecido, Clementina de Jesus foi ‘descoberta’ com mais de 60 anos e outras tantas injustiças. As cantoras contemporâneas à Rita mesmo, Gal, Elis, eram todas vistas com imenso preconceito porque o lugar de cantora era esse. De mais a mais, muitos dos grandes sucessos do nosso cancioneiro da primeira metade do século passado, falava da mulher com tamanha misoginia que hoje nos chocamos por letras como a do samba Emília, gravado por Vassourinha: ‘eu quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar e, que de manhã cedo, me acorde na hora de trabalhar’. Vê se pode? Então, quando Rita canta e escreve não a mulher, mas a proposta de sororidade, é de um pioneirismo impressionante! Um ‘belo dia’ ela resolveu ‘mudar, agora só falta você’, mulher.
O sucesso no declínio
O álbum que ficou conhecido como Lança-Perfume foi um marco no mercado fonográfico. Estávamos numa fase de pleno declínio da indústria fonográfica nacional. Inflação, pouco consumo e, principalmente, as facilidades de se vender discos estrangeiros no Brasil. Mesmo assim, esse disco foi o único a bater não só o recorde de vendas do ano, mas o recorde da própria Rita de vendas de um álbum no seu lançamento. Foi sucesso inclusive fora do país, principalmente na França.
Cultura brasileira em sua música
Rita Lee surge na indústria musical, de fato, na noite de estreia do Tropicalismo e como parte desse movimento. E o Tropicalismo, até certo ponto, também foi essa incorporação de muitos brasis pela música do mainstream. Esse modo de fazer tropicalista foi incorporado, por sua vez, ao processo de criação musical desse mainstream como um todo. Então, quando ouvimos Rita Lee, temos ela na íntegra: brasileira, paulistana, corintiana, filha de americano, propagadora de liberdade, inventora do rock.
Legado na indústria da música
Rita não foi só a “Rainha do Rock”. Foi a personificação do rock no Brasil, ensinou todo mundo que veio depois como fazer. Além disso, foi Rita uma das maiores e melhores compositoras de canção da nossa história e, é bom que se diga, com homens inclusos nessa lista. Essa obra vasta saiu do mercado e entrou para a nossa cultura porque Rita Lee faz parte da gente e não só da gente. Ela é uma das artistas mais celebradas pela classe musical no exterior, ainda que exista a barreira do idioma para o entendimento dos textos de suas canções. E cultura é isso: quando é parte inconteste da nossa gente, é cultura. Rita é cultura nossa. E cultura faz a história.